privacy-icon 21. Onde é a minha casa?

date-icon 20200617

Entre Macau e a vizinha cidade de Zhuhai, há sempre um grande fluxo de visitantes. Acontece, de vez em quando, que os residentes de Macau perdem os documentos de identificação ou de viagem no outro lado da fronteira. O que costumam fazer é declarar o seu extravio ao Departamento de Segurança Pública de Zhuhai e pedir-lhe a emissão de uma permissão de passagem fronteiriça, para, em seguida, poderem regressar ao território. Infelizmente, não foi assim com um residente local que perdeu o Bilhete de Identidade e o Salvo-Conduto para os Compatriotas de Hong Kong e Macau em Zhuhai. Foi obrigado a pernoitar no posto fronteiriço da cidade vizinha, apesar de ter obtido a permissão de passagem fronteiriça. Quem lhe causou embaraços não foi o lado de Zhuhai, mas sim o de Macau...

Em Julho de 1999, o Sr. A deslocou-se de Macau a Zhuhai com a sua mulher. Ali foi-lhe furtada a carteira, que continha o seu BIR e o Salvo-Conduto para os Compatriotas. O casal teve de pernoitar na cidade contígua. No dia seguinte, os dois foram declarar o extravio ao Departamento de Segurança Pública, onde o Sr. A obteve uma permissão de passagem fronteiriça, de uma só utilização. À tarde, ele e a mulher passaram o posto fronteiriço de Zhuhai, sem problema nenhum. Chegados ao posto fronteiriço de Macau, por volta das 16:30h, o marido foi impedido de entrar no território. Os agentes do Serviços de Migração alegaram que, como não conseguiam efectuar de imediato a confirmação da identidade do Sr. A junto da Direcção dos Serviços de Identificação, exigiram-lhe que regressasse à China e voltasse no dia seguinte. Mais tarde, vieram de Macau os familiares do Sr. A, trazendo fotocópias do seu BIR e do referido Salvo-Conduto e, ainda, a escritura da casa em que consta o seu nome, para servir de prova da residência em Macau. Só que, uma vez mais, foi recusada a entrada do Sr. A em Macau.

Eram altas horas da noite. O Sr. A, que já estava há seis horas no posto fronteiriço, estava a viver uma situação problemática: não podia entrar em Macau, nem tinha documento de viagem para regressar à China. Como passaria a noite? Pediu licença para pernoitar nas instalações do posto, mas viu-se de novo perante uma recusa. Não houve outra hipótese se não regressar acompanhado da sua família à China. Depois das devidas explicações, e com a promessa de voltar a Macau antes das nove horas do dia seguinte, foi autorizado a passar a noite nas instalações do posto fronteiriço de Zhuhai. Embora o Sr. A não estivesse na posse de documento válido que lhe permitisse sair, mais uma vez, da fronteira da cidade vizinha, onde também não tinha habitação permanente, viu o seu direito reconhecido pelo posto fronteiriço.

Na manhã seguinte, pelas nove horas, o Sr. A voltou ao posto de Macau. O pessoal do Serviço de Migração recolheu as suas impressões digitais e confirmou a sua identidade junto da DSI. Passadas três horas, foi permitida a sua entrada. Era já meio-dia.

Logo depois deste episódio, o Sr. A apresentou queixa. Com base nas investigações feitas, o Comissariado contra a Corrupção apontou para a ineficiência do pessoal, então de serviço, no posto fronteiriço de Macau. O caso ocorreu na parte da tarde e o pessoal devia ter contactado imediatamente a DSI, no sentido de efectuar a confirmação da identidade do Sr. A. Por outro lado, mesmo reconhecendo dificuldades efectivas, quer administrativas quer técnicas, que impediam a confirmação imediata dos dados pessoais do queixoso, este não devia ser deixado, altas horas da noite, isolado naquela zona onde ninguém exerce jurisdição. Não deviam descurar o respeito por direitos humanos fundamentais.

Os actos praticados pela Administração devem respeitar os direitos e interesses protegidos pela lei. O presente caso ocorreu antes da transferência de poderes de Macau para a China. Estipula o n.º 2 do art. 44.º da Constituição da República Portuguesa – aplicável ao território nos termos do Estatuto Orgânico de Macau – que «a todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar». Após a transição, estes direitos estão garantidos pelo estipulado no capítulo III da Lei Básica. Por isso, sempre que as autoridades estejam perante situações semelhantes, devem contactar no mais breve prazo possível os serviços competentes, para que seja iniciado o processo de confirmação da identidade dos residentes envolvidos, como forma de lhes garantir os seus direitos.

A recomendação do CCAC foi aceite. Foi estabelecida uma rede informática entre o Serviço de Migração e a DSI, que torna viável a confirmação da identidade dos residentes durante vinte e quatro horas, evitando a repetição deste lamentável episódio. Mais tarde, a polícia veio a lamentar o incómodo causada ao Sr. A.

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Os serviços públicos devem saber lidar com situações extraordinárias, especialmente quando se trate de matérias relacionadas com os direitos humanos fundamentais, que têm que ser tratadas com maior rapidez, de modo a evitar prejuízos irrecuperáveis.
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